terça-feira, 29 de maio de 2007

Capítulo 9 – Cavaleiros do Fogo da Origem – parte II

Mushussu fez o fogo dos chifres mais fortes e veio de cabeçada ao encontro do Cavaleiro. Esse tentou uma esquiva, mas inexperiente, a chifrada rasgou-lhe a coxa, não profundamente mas o bastante para fazer-lo cair em um joelho. Foi o tempo de sentir a dor e o cão já vinha agora com os dentes brilhantes, direto no pescoço de Cícero, que rolou para o lado e com o pé bom chutou o rabo do infeliz. Esse deu cambalhota no ar, e caiu em pé, levantando poeira. Cícero pulou pra cima, não vendo escolha, fazendo o rastro da espada no ar zunir como vespa. Foi um baque forte. A lâmina tocou só o chão. O cão alçara um vôo surdo, caindo nas costas do Cavaleiro. As cobras de seu rabo picaram Cícero em simultânea rajada, uma na orelha, outra no ombro, outra ainda no olho esquerdo do Cavaleiro. Nesse momento o Andarilho-Bruxo fez sua mágica, sete farpas cortaram a carne o cão, que se retorceu no chão ao lado de Cícero. Foi o instante. Cícero mesmo com o olho sangrando, enfiou a espada embaixo da pata do cão, como se faz com um porco, esse se retorceu em xingos e blafêmias:

_Mosca-mosquito de picada que arde, que o pé do Diabo que eu mordi bata forte nu seu peito.


Dito isso ele se fez poeira, se espalhando por todo o lado. Mas antes dessa poeira toda cair ao chão ouviu-se sua voz:


_Vocês tem três dias na vila, é o tempo deu voltar do pó!

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Capítulo 9 – Cavaleiros do Fogo da Origem

Como o previsto, entardecera e eles se aproximavam da entrada da vila, essa era deserta. A não ser por um cão magro que espreitava a chegada dos andantes pelo canto do olho, deitado a beira do cruzeiro, que marcava a entrada da vila. Em uma placa os dizeres: “O Fogo da Origem Inda Arde”. Cícero ouvira falar da Festa do Fogo da Origem quando ainda era cabrito. A festa que durava uma semana, era em honra ao Conselheiro, figura mítica, que havia passado pelo sertão pregando à unção do fogo, o fogo criador, a vida que arde. Parou ante ao cruzeiro, se agachando, fala ao cão:

_O que é e o que guarda?

O cão com indiferença volta a deitar a cabeça sobre as patas sardentas. O Cavaleiro pensa então que tem permissão para passar, se levanta pronto a dar a volta pelo pestilento animal. É então que o bicho rosna, mostrando os dentes de demônio. Cícero sorri satisfeito, parando ao lado do cão e segurando o cabo a espada:

_Quem é e o que guarda fio du Cão?!

_Ele não irá responder Cavaleiro – Disse o Andarilho enrolando um fumo – Esta só guardando a entrada, a permissão vamos ter que pedir a outro.

_ E que outro a de ser se viva alma não a nessa vilania?!

_Ao fogo da origem. Aproveitemos o cair da noite.

Dito isso, o Andarilho que tinha alma de bruxo, pegou na mochila uma garrafa, abriu, tomou um gole, e a ofereceu ao Cavaleiro, que de pronto tomou um gole. Era uma cachaça, feita de mandioca, amarga, puba. Jogou então um tanto na raiz de um mato seco. Resmungou alguma coisa e cuspiu. O fogo levantou braçada ao céu, um fogo verde como a alma do encardido. E foi subindo furta-cor até a lua. Beijou-lhe a face, que respondeu brilhando com clarão de um sol prateado. Foi só. Tudo a volta virou meia noite, e o cão mostrou a sua face de morto que teima em viver. Era um corpo podre de um cachorro grande, e na sua cabeça brilhavam sete chifres, nas patas cascos de bezerro, o rabo eram três serpentes e seu nome era Mushussu e era filho de Tiamat, deusa-demônio de um deserto do começo do mundo. Atrás do enfeitiçado, agachada a acariciar os chifres de fogo do cão, uma mulher vestida de escamas, na cabeça dois chifres de cabra, os pés descalços e em uma das mãos uma chave de ouro. O fogo verde envolvia as criaturas e naquela escuridão suspensa, a espada do Cavaleiro brilhava lamuriosa. Um calafrio percorreu a espinha do Cavaleiro. A figura feminina sorria.

_Querem entrar na Vila do Fogo?

A figura disse se levantando. E caminhando como uma mulher da casa da luz foi na direção do Cavaleiro:

_Queremos. Por aqui passou seu pai num foi?!

Ela gargalhou enquanto rodeava Cícero que a acompanhava com os olhos:

_ Não tenho pai, ou mãe, sou o fogo que arde, sou A Criação!

_Demônio de saia de escama e chifre de cabrita nova, vê bem o que profere, o peso de suas palavras são o peso de meu punho.

Ela gargalhou novamente, e parando logo atrás do Andarilho lhe fala ao ouvido, quase um cochicho:

_Vejo que ele herdou suas blasfêmias, mas não sua fala macia.

_Sabes que este não é filho de minha coxa, sou apenas seu escravo.

_Ora, ora, agora tem novo dono, sua sina não muda, e a minha também. Mas me chamou por quê? Seu pupilo ainda não sabe matar cachorro com a bota?!

Ele sorri:

_Sabe que essa vila é leva o nome do fogo, se quiser abrir a porta que o faça, se não, o meu pé vai de encontro aos cavaleiros que vivem mortos.

_Então que seja, sou Djinn, não sou de velar por sono de mortos.

Dito isso a mulher se fez em fogo e a suspensão sumiu. Atrás da velha cruz agora cinqüenta guerreiros-mortos portavam espadas. A primeira batalha era questão de segundos. O Cavaleiro, empunhando a espada rugiu como uma besta, os mortos do outro lado, grunhiam inumanos. O cão com sua face podre latiu para a noite, uivou, vociferou o alerta da madrugada:

_Na vila do fogo da origem, nenhum vivo entrou, e nenhum morto saiu. Eu sou aquele que guarda. Eu mordi até o pé do Diabo, criança. Você pra mim é mosca.

_Então, eu pintei pra lhe abusa!

quinta-feira, 24 de maio de 2007


Capítulo 8 – Na Estrada

Já andavam ha vários sóis e luas. Cícero agora aprendia com seu tutor-escravo. Aprendia sobre tudo, e quanto mais aprendia mais ele descobria que não sabia, inclusive aprendeu que foi um sábio que entendeu isso primeiro. Foi durante as andanças pelo deserto que ele aprendeu a ler, a escrever, a lutar, atirar, usar a espada. A Espada. A espada que foi trazida por um “roninho”, fora assim que O Capitão proclamou. Aprendeu que o homem que a trouxe, na verdade, era um ronin, um guerreiro errante, como agora, também, ele era. Como era estranho ser um errante, um retirante, depois de anos sendo um sedentário de um fio d’água, do Fio D’Água.

Nos dias enquanto andavam, O Andarilho, experiente nas curvas da estrada (mesmo que naquele deserto estrada nenhuma houvesse), lhe ditava a história do mundo, a história que os homens escreveram com sangue, a história que O Criador escreveu com indiferença. Nas noites eles lutavam, para aumentar a destreza do guerreiro. Nas noites eles caçavam, para aguçar os sentidos do caçador. Nas noites ele usava a espada, para purificar a alma do assassino. Assim aos poucos O Cavaleiro ia nascendo. Com a espada do ronin, o winchester do caçador, a jaqueta de Ogum iê, o chapéu do Capitão, ia nascendo do sol ardido do deserto, das noites frias do deserto, dos conhecimentos do tutor, da ânsia de encontrar o Diabo.

Foi no fim de uma manhã, no fim de uma enorme duna, que avistaram, no fim do que um dia foi um vale, a primeira vila desde a partida da vila do Fio D’Água, que já nem existia. O Cavaleiro sentiu na espinha o chamado da espada, sabia que por ali o Diabo tinha pisado. O Andarilho gargalhou ao sentir a sede do Cavaleiro, e continuando as passadas duna abaixo, cutucou em tom de zombaria:

_A sede da guerra é coisa de menino-moço, e isso o Cavaleiro já não é!

_Não sou não Andarilho, mas minha espada é, menina-moça virgem de sangue...

Seguiram a gargalhadas e ao rufar do tambor que agora era o peito de Cícero. Ao cair da tarde entrariam na vila. E sabiam os dois seria uma longa estadia.

Capítulo 7 - Alto do Cruzeiro

Então como se ainda flutuasse na água do mar, Cícero finalmente abriu os olhos. A visão embaçada e um pouco dolorida, por causa da forte luz, o atordoou. Apertou os olhos com as costas das mãos, e depois coçou o rosto. Nesse momento o espanto foi tamanho, suas mãos sentiram pelos por toda sua face, grandes, mas não como os fios de seu cabelo, que pelo que seus dedos sentiram, haviam crescido quase dois palmos
Cícero pulou da cama, e só então, depois de uma tontura e dor aguda nas têmporas percebeu, seu quarto estava com as paredes quebradas e sem o teto de palha, que agora estava em parte pelo chão de toda a casa. Saiu de abrupto do quarto e foi para a o outro cômodo da casa, que servia de sala e cozinha. Servira no passado ao menos, agora estava na mesma situação do quarto. Saiu por onde um dia foi a porta, e foi ai que viu a perdição. No lugar das árvores secas, solo amarelo, cerca de balaustre com um boi magro amarrado, havia apenas areia, onde a vista alcançasse, areia, em dunas da altura do céu, só areia. E onde antes havia uma cerca com um boi amarrado, só uma tora em pé, uma corda velha em volta da madeira mais velha ainda, em uma de suas extremidades, e na outra o esqueleto semi-coberto do que um dia foi seu boi ossento.
Cícero não entendia nada, lembrava-se do mar, lembrava-se da mãe D’Água, e foi então que reparou, no volume no bolso de usa calça. Era o espelho.
Cícero o retirou do bolso, e com medo, olhou sua própria figura. Era inusitado, lisérgico. Quando fumara do “argrilo” na noite anterior, era um menino-moço que não contava mais do que dezesseis aniversários de Nosso Senhor. Agora seguramente era um homem, com mais de duas dúzias de aniversários. Foi no meio do espanto, que Cícero ouviu um assobio fino e descompassado. Procurou, dando a volta na casa, perto de onde havia um poço, e lá estava um homem, que Cícero custou a conhecer a feição. Era O Andarilho. Mas não aquele andarilho maltrapilho, mal-cheiroso, mal feito, meio doente e agachado. Era sim, um homem com a idade aparecendo nas entradas e nos cabelos da fronte, que eram brancos. Um homem com porte, barba feita, olhos claros, cabelos cuidadosamente penteados para trás. Segurava uma tesoura em uma mão, uma toalha na outra, e a sua frente jazia um banco. Recebeu Cícero com um sorriso amistoso, e por fim estendendo um braço na direção do banco, disse com pompa:

_Sente-se meu senhor, não se demore, já passa muito do meio dia e devemos partir!

Cícero estranhou. O Andarilho era tão sertanejo quanto ele. Talvez mais ainda. Com mais sotaque e trejeitos. O andarilho novo o fez lembrar uma vez, um rapaz, filho do Coronel, que fora passar certa feita no mundo velho, e voltou para uma festa do primo do Nosso Senhor, O Batista. O rapaz, como Cícero se lembrava, falava empolado, e andava vestido com tecido fino, e tinha também esse ar de moça da casa da luz.

_Diga-me o que aconteceu comigo?

_Sente-se e tudo será esclarecido, por favor, só darei um jeito em sua aparência meu senhor.

Cícero sentou. O Andarilho então lhe contou como os anos haviam passado, como a terra girou disforme, e finalmente qual o sentido de tudo aquilo:

_Deve ir ter com o Lúcifer, e de sua mão tirar a alma de Maria. Assim está escrito.

Dito isso ele mostrou o resultado de seu trabalho de barbeiro e cabeleireiro, só assim Cícero pode contemplar seu rosto de homem. Tinha o rosto forte, e os olhos cor do mel, mais claros do que se lembrava, e mesmo não tendo visto o sol pelos anos que seu rosto, e o Andarilho contavam, tinha a pele morena.
O Andarilho preparou tudo, um banho, um almoço, as roupas que foram presentes do Capitão. Mesmo naquele cenário desolado, o Andarilho parecia saber bem o que fazer. Partiram então. Cícero tomou a frente mesmo sem saber bem onde ia parar, lembrou-se apenas de cumprir uma promessa que fizera há anos, a Severino, o irmão falecido. Andaram na direção do antigo morro do Cruzeiro, que para sua surpresa, ainda que no meio das dunas, resistia. Lá do alto olhou o que foi sua terra, o que foi Fio D’Água, sentiu uma nostalgia crescente, uma lágrima infantil, e por fim cumpriu seu prometido. Afrouxou o cinto e mijou no pé da cruz.

Capítulo 6 - O Fim do Segundo Ato

O garoto descansava embaixo de toda a água do mundo, mas sentia, contudo, a mão da figura feminina de luz a acariciar seus cabelos. Mesmo dormindo com os olhos fechados podia ver, e se via, era por que sabia que deveria ver bem, e foi então que viu o monstro: Tinha o formato de peixe, mas peixe não era, por que só a mão do cão faria tal criatura. A boca era do tamanho de todo um vale, o guincho de boi abafado podia ser ouvido nos sete cantos desse vale de lágrimas. Foi então que Cícero quis acordar, mas ouviu a voz da mulher-anjo, ela clamava por calma, e o corpo de Cícero obedeceu, mesmo com o coração em pânico.
Cícero pode então entender a língua do bicho, e seu mugido era fácil de imitar, por que Cícero também era monstro, e era da mesma pareia que o primeiro, e o nome da família deles era Baleia. Cícero era também Baleia, e sabia como Baleia que a mulher de azul não era nem a mãe do Senhor, nem a mulher-anjo, e como Baleia pronunciou no seu mugido de monstro a saudação a essa outra mãe em formosura. E seu mugido como o da sua irmã Baleia, falava a mesma coisa que as bolhas dos peixes a volta da Mulher-Mãe D’Água, como numa celebração da ressurreição de Nosso Senhor, esse uníssono de todos os monstros das profundezas da água do mundo, de todos os frutos da terra submersa, de todas as Serias-Iaras de espelho na mão, de todos os bichos criados das águas, de todos os filhos de branco de um reino, de um rio, do primeiro mês do ano, jogando as flores na água do mundo, esse coral cantava uma palavra:

_Odoiá!

E foi assim que Cícero conheceu mais do mundo que de si mesmo. Então teve que abrir os olhos, para poder contemplar a figura da Rainha. Rainha do Mar, pois era assim que a água toda do mundo a chamava, e não havia só um mar, havia sete, mas isso ele só soube por que um dia foi Baleia. E a figura da Rainha era mais linda agora que ele sabia. Porque a mãe do Senhor era bonita mais era de barro, e a mulher-anjo em toda a sua formosura, não tinha mais o brilho que tinha quando era só anjo, por que viro mulher, mas a Rainha, essa era Santa D’Água, e era mãe também, e era mulher, e era rainha, era três e era uma. Tinha a pele escura, mas não queimada de sol, como a pele dos sertanejos, era escura como a pele dos filhos da terra mais antiga. A roupa era alva, clara como as nuvens do céu, era véu de noiva, ele soube. Nas mãos havia um espelho, por que era vaidosa, por isso Cícero soube que deveria amá-la. Tudo em seus adornos era de prata e pérola, seu elmo, seu espelho e tudo mais.
Cícero que agora amava a Mãe D’Água, podia ver a dança dos peixes, dos cavalinhos que sabiam nadar, e em volta dela brincavam e corriam como se tivessem num pasto verde. Foi assim que ela o pegou pela mão e o levou até o mais fundo que o fundo do mar, de toda a água do mundo, e lá nas profundezas, uma monstro grande, que era um baú, e Cícero sabia era uma ostra, abriu-se toda para a mulher de prata e branco. Dentro, feito da carne do monstro, havia uma pérola, grande como a lua, calculou Cícero na sua ingenuidade, pois a lua era bem menor na verdade. A mãe pegou a bola cintilante, e mostrou a Cícero o interior do mundo, no interior da pérola, e foi então que o menino-moço-santo teve medo, pois soube que as ladainhas da mãe velha-cumadre estavam certas.
O Cão era figura de homem, se disfarçava de anjo que foi um dia, cheirava fedido, era da cor da pimenta e tinha os cornos do touro boi-zebú, que Cícero sempre soube, tinha parte com o cão. O Cão segurava na mão vermelha o espírito de uma moça. Cícero olhou mais de perto, e foi então que chorou, pois o espírito que o cão segurava era o da mulher-anjo do Capitão. Cícero fugiu da imagem, a Mãe D’Água não o reprimiu, mas olhou com lágrimas também para ele, e disse, num canto triste, por fim:

“A mãe do Senhor é irmãzinha,
Minha maninha ela é,
E é irmã de Maria,
Que é anjo e é mulher

Eu que sou Rainha D’Água,
Dela não posso sair,
Mas mandei chamar um santo,
Para cá ver e ouvir,

Ouvir esse canto triste,
Que conta o que aconteceu,
A história de Maria,
Mulher-anjo que morreu,

E na guarda do Capitão,
Roda como Rainha,
Para que não ache ela, o Cão,
Que dela a alma já tinha,

Então veio a mãe do Senhor
Ter com o cangaceiro uma prosa,
Contou que a nossa irmã,
Era pedra preciosa,

E que ele deveria guardá-la,
Como o canteiro guarda a rosa,
Até que um santo salvasse
A alma da mão leprosa

Do Cão inimigo do Senhor,
Que um dia foi anjo como ela,
E agora é só o Cão
Diabo de língua amarela”

Cícero chorou de novo no fim do canto, e entendeu por fim por que a beleza da mulher-anjo era tão triste. A mãe D’Água pegou o espelho, e estendeu para Cícero, que após relutar aceitou. Ela então, estendeu de novo a mão, acariciou o rosto do menino, e por fim tocou de novo sua testa. Ele então viu que descansara por demais, e que sua criação estava se perdendo, decidiu por fim acordar. Foi o fim do segundo ato.

Capítulo 5 - Os Anjos Caídos e A Construção do Caos

Cícero estava imerso, embaixo de toda a água do mundo. Ele sabia que era toda a água do mundo, por que não podia haver no mundo mais água que ali. Então viu uma luz azul, na forma da lua quando está cheia, mas ela foi tomando a forma da mãe do Senhor, ou mesmo da mulher-anjo do Capitão. Ele então a ouviu cantar:

“Os homens são anjos caídos que Deus mandou para Terra porque
botaram defeito na criação do mundo. Aqui, começaram a
inventar coisas, a imitar Deus. E Deus ficou zangado, mandou muita chuva e muito
fogo, eu vi de perto a sua raiva sacra, pois foram sete dias de trabalho intenso,
eu vi de perto, quando chegava uma noite escura
Só meu candeeiro é quem velava o Seu sono santo
Santo que é Seu nome e Seu sorriso raro
Eu voava alto porque tinha um grande par de asas
Até que um dia caí
E aqui estou nesse terreiro de samba
Ouvindo o trabalho do Céu
E aqui estou nesse terreiro de guerra
Ouvindo o batalha do Céu
Nesse terreiro de anjos caídos
Cá na Terra trabalho é todo dia
Levantar quebrar parede
Matar fome matar a sede
Carregar na cabeça uma bacia
E esse fogo que a Sua boca envia
Pra nossa criação
Deus
Esse terreiro de anjos
Esse errar que é sem fim
Essa paixão tão gigante
Esse amor que é só Seu
Esperando Você chegar
Os Homens aprenderam com Deus a criar e foi com os Homens que Deus aprendeu
a amar”

Então ao final da cantoria ela tocou na testa do menino-moço, ele então viu que tudo que havia feito era bom, e descansou no último dia.

Capítulo 4 - Tempestade

Os homens do Capitão armaram acampamento nas terras de Cícero. A chuva caía, como no Livro, no tempo em que a terra toda virou água, o “Diluvu”, a tempestade. Mas dentro da casa, só algumas goteiras caíam no chão batido, e sentados nas cadeiras que haviam na casa estavam, Cícero, O Capitão, e o anjo que ele capturou na sua viagem ao Céu, ao qual chamou de Maria, porque tinha as feições da mãe do Senhor. O andarilho estava agachado, um joelho no chão e o estandarte roçando na palha do teto. O Capitão havia mandado um dos homens trazer vários embrulhos, que jaziam agora sob os pés do menino-moço, que ainda procurava entender toda a cantoria do Capitão. Por fim, acendendo um cigarro de fumo-de-corda, e estendendo outro a Cícero, o Capitão põe a falar:

_Esses presentes que trago das minhas viagens, a cada parada, a cada batalha, algo de valor é acrescentado ao depósito da espada que meu Padrinho me fez. Vamo rapaz desembrulhe:

Calado e apreensivo, Cícero pega um dos pacotes no chão, retira a folha de papel de ceda florido que embrulhava o presente. Era um chapéu, como os que os homens do cangaço usavam, diferentes dos chapéus dos vaqueiros. Esse era especial, tinha na aba dobrada uma cruz em ouro, e três medalhas do santo que chamavam de Bento. Cícero olhou com espanto para O Capitão. Que disse:

_É a cruz do cordeiro, e as medalhas do Santo Bento. Vai te proteger na sua empreitada. Vista e vamo vê cumé que fica.

Cícero vestiu sem graça, o Capitão sorria satisfeito enquanto soltava a fumaça pelo nariz queimado do sol. Cícero pegou então outro pacote. Nesse Havia uma jaqueta de couro, incrustado nas costas havia uma imagem do santo guerreiro, que os homens nas batidas do atabaque chamavam e ogum-iê, e as mulheres do rosário chamavam de Jorge. A imagem tinha pedras e ouro. O Capitão fez um sinal de sim com a cabeça e Cícero vestiu a jaqueta, de couro forte como nunca vira, mas de vestir macio. Pegou, pois o terceiro pacote e desembrulhou. Dessa vez havia um livro. Cícero sabia o que era, pois havia visto um uma vez, folheou, mas não sabia lê-lo, na verdade, o menino-moço não sabia ler. O capitão disse então:

Não se preocupe, a mesma pessoa que me ensinou o ensinará. Meu escravo agora é seu.

Por fim o Capitão fez um ultimo sinal, e um baú adentrou a casa. Em cada extremidade, uma figura de uma mulher com asas no lugar dos braços, as figuras, que depois Cícero viera saber, eram querubins e eram feitas em ouro. Uma vez que O Capitão abriu o baú com uma chave que trazia no pescoço, dentro do mesmo havia algo de vidro e com mangueiras, um cajado dividido em três, uma ponta de lança e uma winchester:

_ A primeira das benção é o clariar – disse o Capitão enquanto pegava o objeto de vidro – O Clariar das idéia meu minino. Isso é um “argrilo”. Um fumo di otru deserto. Mostra a quem pita, como foi, é i vai sê!

O Capitão preparou então o fumo, o acendeu, e entregou a ponta de metal da mangueira ao menino-moço, que a tragou profundamente. Apenas um instante depois, ele viu o princípio...

Capítulo 3 - A Árvore dos Encantados

O Capitão, que anunciava sua chegada com a salva de tiros dos seus cangaceiros, estava parado em cima de seu cavalo, a sua frente, o andarilho trazia o velho estandarte do Coração de nosso senhor, ao seu lado esquerdo, uma mulher q mesmo embaixo da chuva forte, tinha o semblante da mãe do Senhor, bunita como a flor do mandacarú.
O capitão então, levantou a mão, sem perda de tempo todos os vaqueiros pararam com a salva. Ele olhando fixo para Cícero, que aterrorizado diante da figura o Rei da terra seca, diante do maior exército das terras esquecidas, diante da maior chuva que seus olhos de menino-moço já viram, ficou parado ante a porta.
O Capitão cantou por fim:

"Eu que venho im nome du Senhor
Eu que vi a água sem fim
Eu que vi o sangue e o amor
Repito eu, que vim em nome du senhor

O Padrinhu que tem o mesmo nome seu mi mandou
Pur que sabia que eu ia encontra
O minino-moço que O Santo de nome apadrinhou
Por que santo o menino vai ser nu altar"

Descendo do cavalo O capitão continua:

"E eu vejo pru menino u futuro
O ouro do mundo vai ser pouco
Os caminhu du mundu vão ser muitu
E a cada parada, amor, sangue e seus frutu

Vai correr o trecho, menino, eu te digo
vai percorrer os caminhos que eu não sigo,
por que escrito pelo Nosso Sinhô seu destino está

Vai cortar a carne e o isprito.
Vai ser lenda, cordel i mito,
por que escrito pelo Nosso Sinhô está"

Andando até o menino profeça:

"Minha fé mi trouxe menino
Meu Padrinho de mim fez Capitão
De você fez afilhado, menino
para carregar os mistério na mão"

ajoelhado por fim o capitão estende um embrulho a Cícero:

"Sou mas rei, que qualquer rei,
mas terra e palácio num tenho.
Sou mais rico do que posso levar, menino,
mas só trago comigo o motivo do purque venho

Essa espada veio de outro mundo,
quem a troxe se chamava roninho,
entregou essa espada pro meu padrinho,
que agora entrego pra ti meu santinho!

Por que assim quis o Sinhô
que você fosse escolhido com amor
pra cortar a carne do cão,
pra ser o único a chamar Nosso sinhô de IRMÃO!"

A palavra foi seguida por gritaria e salva de tiros, bater de palmas, e de pés no chão molhacento. Cícero atordoado como se tivesse tomado toda a cachaça da venda do cumpadre preto, caiu de joelhos e cantou:

"Quem sô eu pra ter Capitão nus meus pé?
Quem sô eu pra recebe do Padrinho presente?
Quem sô eu pra chamar o Sinhô di irmão?
Quem sô eu pra decidi que sim ou que não?

Se levante homi, que da sua sandalia sô tapete,
da sua pechera so bainha, da cartuchera alvo,
Se levante por que Padrinho te fez Capitão,
e de mim, Nosso senhor fez orfão, sem aguá ou pão"

O Capitão sorriu, entre os dentes brancos um de ouro, e colocando a mão no ombro de Cícero, deisse por fim:

_Padrinhu me disse qui assim ia ser. Que ia negar, por que discunhece quem é. Mas vamo hoje festeja, meu menino, a procura do fim-du-mundo cabo-se!

Capítulo 2 - Chuvê

O sabiá cantou o fim do primeiro dia depois do enterro de Severina, a mãe, a Cumadre-Velha. O sabiá avisava a chegada da chuva. Cícero bebia da última garrafa que sobrou da festa, só pensava agora em ir embora, não havia mais nada pra ele em Fio D'Água.
Cícero era filho de Severina tanto quanto outros quinze, que foram se indo enquanto a Cumadre-Velha ia ficando mais velha. Não eram todos realmente filhos de carne da mãe. A maioria eram filhos da casa da luz, e a velha cumadre como parteira, os paria e adotava, e iam aos poucos sendo criados naquela tapera, nos arredores da vila de Fio D'Água.
Cícero já contava dezesseis dias do nascimento de Nosso Senhor, já podia ter deixado a mãe a um ou dois dias do Senhor passados, mas tinha em seu coração, cuidar da velha que cuidou dele desde cabrito.
E o sabiá cantava, ia passar três meses cantando, chamando a chuva, que nesses tempos do fim do mundo, era tão pouca que o fio d'água que dava nome ao lugar, não passava de terra rachada e espinha de peixe pequeno. A mandioca já não dava como nos tempos de antes, o carcará, companheiro do caatingueiro, comia o último calango. Era no que Cícero pensáva enquanto via a cena, o último boi das terras da mãe, era agora só uma estopa em saco, com o esqueleto teimando em rasgar o fino tecido, não demorava muito ele ia cair, para que os ossos aparececem enquanto os mosquitos nasciam e voavam no chifre. Era o último boi, por isso Cícero não vestia mais a roupa de vaquejada, que seu irmão mais velho deu a ele quando ele passou pelo seu 13º aniversário do Nosso Senhor.
Nos dias que se contaram depois do seu aniversário, Severino, filho legítimo da mãe e seu irmão mais velho morreu.

O menino-moço que agora cantarolava uma canção da ceia do Cordeiro de Deus, estava com a cabeça pesada e variando no sol-lua que queimava.
A garrafa se encontrava já bem perto do fim, foi quando chegou o andarilho.
Cheirava o suor de uma estrada, e o pano sujo na sua cabeça deveria estar cobrindo alguma pestilência que por mal dos seus pecados, uma cigana o lançou em feitiço. Mas ele vinha a passos curtos apoiados num cajado, e as sinetas amarradas na ponta da mesma davam o compasso, a cada batida da velha vara no chão. E foi então que o sujo disse ao mal-lavado:

_Oh quem vém é fi do Senhor! Se num pódi, pur bem das arma, um menino-moço chama a mãe pra dá di cumê a velho, qui anda na Lua da serpente, cum todas mal feita da vida?!

Cícero lembrou de todas as vezes que um ou outro viajante passou pelas terra da velha cumadre e ela o abrigou. O coração da mãe era coração da Mãe de Nosso Senhor. levantou pra lua-sol a garrafa, e com um comprimento desajeitado, chamou o mal-cheiroso pra perto.

_O fio da véia cumadi tem o coração ingualzinhu u da véia. Mas, discurpandu u mal jeito das pregunta - disse irando o pano da cabeleira - Cadê a véia qui ocê inda num chamô?

_A mãe si foi pra junto do Senhor faz oito lua - disse Cícero e deu um gole, depois ofereceu ao desaventurado.

_Intão devi di tá mió qui nóis, com a graça da vrige.

Calado, Cícero se levanta, meio zonzo pela bebida, e entra pela porta das quatro paredes de pau-a-pique. Volta então com uma cuia, com carne seca e farinha e entrega ao andante.

_Muicho agradicido - ele come um bocado amassado na mão, e aind mastigando confere - Mais u mininu num é Sivirino, qui quandu passei a muitus anu fazia vaquejo com as vinte cabeça qui o véio-compadi dexo a cumadi?

_Pelo que vejo tem mais de quinze dia da festança do Senhor, que o andante num passa por Fio D'Água?
_Pois tá pra mais!

_Pois intão lhe digo, que tá com duas festa do nascimento, qui Severino, morreu!

_Intão tá mió qui nóios na grasdideus!

_Ih num é!

O andante comeu quiéto e com os olhos vidrados até o último bocado. Se levantando e deixando a cuia nas mãos de Cícero, cobriu a cabeça e proclamou:

_Que abençoado já seja como é u fio da véia! Eu qui num sô di vê futuro, pelos mal que já fiz, ti digo minino-moço, qui ainda esta noite da istrava vem surpresa, intão cum a graça fique!

Balançando a cabeça, o menino agradeceu.
Quando a coruja cantou com a lua no meio do céu, junto com o som da chuva de encher poço, que começou a cair após a partida do andante, veio um bando, de quase cem dos vaqueiros do cangaço, logo atrás do estandarte do Coração do Cordeiro, como este mesmo anunciava, veio vindo O Capitão.

Capítulo 1 - A Chamada dos Santos

A ladaínha já durava sete dias, mas esse era o costume, as velhas de Fio D'água ajoelhadas, pés rachados, descalços, nas mãos enrrugadas, rosários. Alguns, rosários feitos em casa, as de descendência, com rosários com contas de madre pérola, mas todas com o rosário, e com o chale preto na cabeça, esse era o costume.
Já no final do segundo terço, do quarto rosário depois do anoitecer, vinha intão a ladaínha dos homens, a ladainha profana. As mulheres então se levantaram com o sinal da santa cruz, e foram saindo da sala, enquanto os homens entraram em cantoria, para então pegar o corpo da velha comadre, que jazía na mesa já havia semana. Levando na rede o corpo da velha, ao saírem pela porta. o corpo foi saudado com uma salva de tiros para a lua, que na noite era minguante.
Começou então o bater de atabaques, as cumadre-velhas que acreditavam nos santos entraram na roda, enquantos as outras, que não tinham tal fé, voltavam com as crianças, deixando a terra da difunta para ir devolta à vila.
Nesse momento se realizou a última ladaínha. Os homens cantavam e e tocavam os atabaques e agogôs, as mulheres dançavam. Cícero, menino-moço filho da cumadre, saiu pela primeira vez de dentro da casa, desde a morte da velha. Trazendo em suas mãos o perfume que usava a mãe em dia de celebração do Cordeiro de Deus, ele aspergiu sobre a rede em que ela jazia, e logo depois, jogou o vidro com todo o seu conteúdo dentro da enorme fogueira.
Segundos depois o vidro esplodiu, foi então, que dobrou o toque dos atabaques, aos gritos das mulheres, e saudações dos homens. As meninas-moças entraram de branco trazendo a carne seca, a farinha de mandióca e a cachaça, esse era o costume. Começava a últimna festa de Severina, a velha cumadre, e foi noite a fora. Dança, bebida, comida, como a velha-cumadre sempre gostou. Até que a fogueira morresse, e com ela morresse a noite.
O dia vinha nascendo, botando fogo onde, diziam os velhos, havia tanta água quanto o mar azul do céu. Cícero bateu com as costas da pá uma última vez na cruz feita de improviso, com dois galhos secos e espinhentos. A mãe se foi. E ele agora estava só no mundo.