quinta-feira, 24 de maio de 2007

Capítulo 2 - Chuvê

O sabiá cantou o fim do primeiro dia depois do enterro de Severina, a mãe, a Cumadre-Velha. O sabiá avisava a chegada da chuva. Cícero bebia da última garrafa que sobrou da festa, só pensava agora em ir embora, não havia mais nada pra ele em Fio D'Água.
Cícero era filho de Severina tanto quanto outros quinze, que foram se indo enquanto a Cumadre-Velha ia ficando mais velha. Não eram todos realmente filhos de carne da mãe. A maioria eram filhos da casa da luz, e a velha cumadre como parteira, os paria e adotava, e iam aos poucos sendo criados naquela tapera, nos arredores da vila de Fio D'Água.
Cícero já contava dezesseis dias do nascimento de Nosso Senhor, já podia ter deixado a mãe a um ou dois dias do Senhor passados, mas tinha em seu coração, cuidar da velha que cuidou dele desde cabrito.
E o sabiá cantava, ia passar três meses cantando, chamando a chuva, que nesses tempos do fim do mundo, era tão pouca que o fio d'água que dava nome ao lugar, não passava de terra rachada e espinha de peixe pequeno. A mandioca já não dava como nos tempos de antes, o carcará, companheiro do caatingueiro, comia o último calango. Era no que Cícero pensáva enquanto via a cena, o último boi das terras da mãe, era agora só uma estopa em saco, com o esqueleto teimando em rasgar o fino tecido, não demorava muito ele ia cair, para que os ossos aparececem enquanto os mosquitos nasciam e voavam no chifre. Era o último boi, por isso Cícero não vestia mais a roupa de vaquejada, que seu irmão mais velho deu a ele quando ele passou pelo seu 13º aniversário do Nosso Senhor.
Nos dias que se contaram depois do seu aniversário, Severino, filho legítimo da mãe e seu irmão mais velho morreu.

O menino-moço que agora cantarolava uma canção da ceia do Cordeiro de Deus, estava com a cabeça pesada e variando no sol-lua que queimava.
A garrafa se encontrava já bem perto do fim, foi quando chegou o andarilho.
Cheirava o suor de uma estrada, e o pano sujo na sua cabeça deveria estar cobrindo alguma pestilência que por mal dos seus pecados, uma cigana o lançou em feitiço. Mas ele vinha a passos curtos apoiados num cajado, e as sinetas amarradas na ponta da mesma davam o compasso, a cada batida da velha vara no chão. E foi então que o sujo disse ao mal-lavado:

_Oh quem vém é fi do Senhor! Se num pódi, pur bem das arma, um menino-moço chama a mãe pra dá di cumê a velho, qui anda na Lua da serpente, cum todas mal feita da vida?!

Cícero lembrou de todas as vezes que um ou outro viajante passou pelas terra da velha cumadre e ela o abrigou. O coração da mãe era coração da Mãe de Nosso Senhor. levantou pra lua-sol a garrafa, e com um comprimento desajeitado, chamou o mal-cheiroso pra perto.

_O fio da véia cumadi tem o coração ingualzinhu u da véia. Mas, discurpandu u mal jeito das pregunta - disse irando o pano da cabeleira - Cadê a véia qui ocê inda num chamô?

_A mãe si foi pra junto do Senhor faz oito lua - disse Cícero e deu um gole, depois ofereceu ao desaventurado.

_Intão devi di tá mió qui nóis, com a graça da vrige.

Calado, Cícero se levanta, meio zonzo pela bebida, e entra pela porta das quatro paredes de pau-a-pique. Volta então com uma cuia, com carne seca e farinha e entrega ao andante.

_Muicho agradicido - ele come um bocado amassado na mão, e aind mastigando confere - Mais u mininu num é Sivirino, qui quandu passei a muitus anu fazia vaquejo com as vinte cabeça qui o véio-compadi dexo a cumadi?

_Pelo que vejo tem mais de quinze dia da festança do Senhor, que o andante num passa por Fio D'Água?
_Pois tá pra mais!

_Pois intão lhe digo, que tá com duas festa do nascimento, qui Severino, morreu!

_Intão tá mió qui nóios na grasdideus!

_Ih num é!

O andante comeu quiéto e com os olhos vidrados até o último bocado. Se levantando e deixando a cuia nas mãos de Cícero, cobriu a cabeça e proclamou:

_Que abençoado já seja como é u fio da véia! Eu qui num sô di vê futuro, pelos mal que já fiz, ti digo minino-moço, qui ainda esta noite da istrava vem surpresa, intão cum a graça fique!

Balançando a cabeça, o menino agradeceu.
Quando a coruja cantou com a lua no meio do céu, junto com o som da chuva de encher poço, que começou a cair após a partida do andante, veio um bando, de quase cem dos vaqueiros do cangaço, logo atrás do estandarte do Coração do Cordeiro, como este mesmo anunciava, veio vindo O Capitão.

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